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terça-feira, 17 de julho de 2012

Revista Veja BH:
 Uma beata mineira

Católicos se reúnem em Baependi para celebrar a primeira beatificação de uma negra brasileira

por Carolina Daher | 11 de Julho de 2012
Odin

Celebração: 4 000 fiéis assistiram à missa presidida por dom Diamantino pelo reconhecimento de Nhá Chica

Os termômetros insistiam em permanecer abaixo dos 10 graus, mas a madrugada fria não conseguiu desanimar os oitenta fiéis de São Thomé das Letras. Mal passava das 3 horas do último domingo (1º) quando o grupo iniciou a caminhada de 52 quilômetros até a Associação Nhá Chica, no centro de Baependi, localizada a 386 quilômetros da capital. Como eles, mais de 4 000 fiéis se reuniram na cidadezinha do sul do estado para participar da primeira missa dominical realizada por lá depois que o papa Bento XVI assinou a beatificação da mineira Francisca de Paula de Jesus, a Nhá Chica, a primeira brasileira negra e leiga (que não faz parte do clero) a receber o título. “Valeu cada passo que dei, ela é uma mãe para o povo”, disse o extrator de pedras preciosas Carlos Roberto Batista, ainda emocionado com as palavras do bispo da Diocese de Campanha, dom Diamantino Prata de Carvalho, que presidia a celebração. De ônibus, van, carro, a pé e até mesmo a cavalo, católicos de várias partes de Minas Gerais - e até de outros estados - foram ver de perto o lugar onde viveu a beata. O município de pouco mais de 20 000 habitantes já é ponto de romaria há tempos. “Hoje temos o reconhecimento da Igreja, mas pela fé Nhá Chica é santa há quase 200 anos”, afirma Yolanda Aparecida Fernandes, que faz o papel de relações-públicas da comissão de beatificação que acompanhou todo o processo.

Nascida no distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes, em São João del Rey, Nhá Chica mudou-se ainda criança para Baependi, na companhia de sua mãe, uma ex-escrava, e do irmão. Seu pai era desconhecido. Entre os poucos pertences levados pela família, estava a imagem de Nossa Senhora da Conceição que permanece até hoje na cidade. A mãe de Nhá Chica morreu em 1818, deixando as duas crianças sozinhas no mundo. Foi quando a menina, então com 10 anos, se tornou devota de Nossa Senhora, a quem tratava carinhosamente por “sinhá”. Segundo os religiosos, ela possuía os dons da oração e da clarividência — e chegaria a levitar. Ainda muito jovem era procurada para fazer orações e dar conselhos, inclusive sobre negócios. Atendia dos mais humildes aos conselheiros do Império, que viajavam até o pequeno lugarejo para ouvir as profecias de Nhá Chica. Sua fama se espalhou pela região e ela logo ganhou o título de “santa de Baependi”, que rejeitava. Dizia que não era santa, apenas rezava com fé.

Sua devoção a Nossa Senhora da Conceição era tamanha que, em 1865, ela ergueu uma pequena capela para a santa perto de sua casa. “Nhá Chica esmolou até conseguir o dinheiro necessário”, conta Yolanda. “Ela precisou vencer muitos preconceitos. Era uma mulher pobre, negra, filha de escrava, analfabeta e leiga. Isso prova o poder da fé.”

A capela erguida por Nhá Chica não existe mais. No lugar foi construído o Santuário de Nossa Senhora da Conceição, onde estão depositados seus restos mortais. Junto à igreja estão a Associação Beneficente Nhá Chica, que atende 173 crianças carentes, e a casa onde ela viveu. Nesta ficam ainda as salas de ex-votos, com fotos, objetos e placas de agradecimento daqueles que acreditam que foram abençoados. Nos livros de registros, há mais de 17 600 casos de graças que teriam sido alcançadas por seu intermédio. Um deles foi relatado pela professora Ana Lúcia Meirelles Leite e - reconhecido pelo Vaticano - garantiu a assinatura, no último dia 28, do decreto papal de beatificação. O processo de canonização, aberto há mais de vinte anos, em 1991, foi árduo. Pelo menos cinco médicos brasileiros e outros cinco do Vaticano tiveram de validar a cura de Ana Lúcia, que sofria de um problema cardíaco congênito (leia o quadro na pág. ao lado). Duzentos e quatro bispos, de 25 estados, assinaram um documento para fortalecer a campanha de Nhá Chica. A documentação completa do processo tem cerca de 1 500 páginas.

Embora a mulata milagreira tenha morrido há mais de um século, em 1895, suas histórias estão mais vivas do que nunca nas ladeiras de Baependi. Todo mundo conhece alguém que se diz agraciado por ela. Diretora da Associação Beneficente que leva o nome de Nhá Chica, a irmã Claudina Ribeiro foi a primeira a ser avisada da beatificação. Eram 8h30 da manhã quando o postulador Paolo Vilotta ligou de Roma dizendo que o papa finalmente assinara o decreto que reconhece a cura da professora Ana Lúcia Meirelles Leite como um milagre. “Eu chorei de emoção”, conta a irmã. “Foi muita luta até aqui.”

E ainda haverá muitos momentos emocionantes pela frente. Apesar de Nhá Chica já ser reconhecida como beata, sua consagração carece de um ritual religioso, que inclui uma celebração em Baependi com a presença de representantes do Vaticano. “Pensamos em realizar a cerimônia no dia 14 de junho de 2013, quando se completam 118 anos de sua morte”, diz dom Diamantino. O bispo pretende pedir ao governador Antonio Anastasia ajuda financeira para a recepção dos romeiros. A expectativa é que, nesse dia, a cidade acolha cerca de 50 000 fiéis. “Não estamos preparados para tudo isso, mas tenho certeza de que, com a intercessão de Nhá Chica, Deus abrirá nossos caminhos e conseguiremos fazer uma festa linda”, completa a irmã Claudina. Agora que a beatificação se tornou realidade, acredita-se que o número de devotos esperançosos de merecer uma graça vai aumentar. Afinal, o caminho até a santidade ainda será longo para a beata (leia o quadro na pág. 19). Para que Nhá Chica seja considerada santa, o Vaticano precisará reconhecer um milagre que se realize depois de 28 de junho.


Os passos para a santidade

1 - Um candidato se torna servo de Deus quando o Vaticano aceita estudar a pesquisa sobre sua conduta em vida e sua fama de milagreiro.

2 - Em uma segunda etapa da análise, se onze virtudes cristãs forem reconhecidas pelo Vaticano, o servo de Deus passará a venerável.

3 - O título de beato é concedido quando o papa confirma a existência de um milagre obtido pela intercessão do venerável.

4 - Se um segundo milagre for comprovado após a beatificação, ele será considerado santo.



Odin

A professora Ana Lúcia Meirelles Leite, que atribui sua cura à “santa de Baependi”

Em 1995, a professora Ana Lúcia Meirelles Leite descobriu que sofria de uma doença grave conhecida como CIA. Tinha uma fenda de 2 centímetros no coração, o que fazia o sangue venoso se misturar ao arterial, dificultando a oxigenação e sobrecarregando os pulmões. Os especialistas foram unânimes: seria preciso fazer uma cirurgia de emergência. Três dias antes do procedimento, no entanto, uma febre alta obrigou Ana Lúcia a adiá-lo. Foi quando passou a rezar com fervor para a “santinha de Baependi”. Como as crises de falta de ar estavam cada vez mais esporádicas, a professora só repetiu os exames pré-operatórios seis meses depois. O diagnóstico foi surpreendente: a cavidade no coração estava fechada. “Os médicos ficaram sem palavras”, lembra Ana Lúcia. Em 1998, ela foi chamada pelo Vaticano para dar seu testemunho. “Insistiam em perguntar se eu não tinha rezado para algum outro santo.” Ela garante que não. Durante dez anos, a professora enviou seus exames à Congregação das Causas dos Santos para confirmar seu estado de saúde. “Eu só pensava em retribuir o carinho que Nhá Chica teve comigo”, diz Ana Lúcia, que recebeu a notícia da beatificação no dia do seu aniversário de 67 anos.


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